terça-feira, 5 de maio de 2015

Casa da encosta

Vivi na casa da encosta durante 57 anos.
Tinha uma vista belíssima sobre o mar.
Gostava de abrir as janelas de manhã e sentir o fresco a entrar no quarto.
Tinha uma cadeira de verga ao lado da janela.
De tarde sentava-me  nela e lia aqueles livros que ninguém conhece.
Sentia-me um intelectual do nada, que era exatamente aquilo que melhor me definia.
À noite, se estivesse muito quieto conseguia ouvir as ondas a bater nas pedras do pontão.
A minha Margarida também gostava mito da casa.
Muito gostava ela de regar os amores-perfeitos dos vasinhos azuis e os malmequeres altos que havia ao lado da porta da frente.
E eu ralhava com ela, porque ela regava as flores e a erva, que depois tinha de ser eu a arrancar.
Tenho saudades dela. A minha grande companhia durante tantos anos.
Era uma mulher como não mais há hoje em dia. Sempre amiga e carinhosa.
Mas, ainda assim, triste.
O dia da notícia de que  nunca poderíamos ter filhos mudou a minha Margarida para sempre.
Por isso dependíamos um do outro e só nos tínhamos aos dois.
Os últimos anos da minha Margarida foram muito dolorosos para mim.
Aquela maldita doença, que me levou a Margarida mais bonita das flores da minha casa da encosta. Levou com ela também aminha alegria de olhar a vida.
Mesmo assim, ainda lá vivi mais 2 anos sem ela.
Os piores que tenho memória.
Os vasos nunca mais ninguém os regou e as ervas nunca mais as arranquei.
Secou tudo menos as minhas lágrimas.
Não sei se era tristeza ou se era d tanto olhar o mar ali de cima da encosta, mas também eu ganhei sal nos olhos.
Sei que fiquei ainda mais velho. Vejo pelas rugas das mãos porque não tenho coragem de me ver aos espelhos.
Foi difícil abandonar a casa.
Quando olhei para dentro a última vez vi os raios de sol a entrar pela janela de frente e pareceu-me ver a Margarida sorrir para mim, com um ramo de malmequeres na mão e dois amores-perfeitos nos olhos.
Senti que naquele momento o filme da minha vida tinha acabado o final não tinha sido exatamente aquilo que eu pensava que seria.
Acordei ontem no sítio onde me recordo hoje.
Dizem que é para o meu bem.
Vivo cá eu e mais 100. Todos atores reformados de filmes diferentes que acabaram todos um final semelhante.
Estamos aqui todos abandonados. Acompanhamos a solidão de cada um de nós, que nada mais tem de seu a não  ser ela mesma.
Pergunto-me quando verei novamente a minha Margarida.

Um dia eu sei. Sei que vou voltar a abrir os olhos em frente à porta da nossa casa. E quando olhar novamente para os raios de sol que saem pela janela da frente vou vê-la.
Ela vai estar a pegar nos malmequeres e vou entrar. Os nossos passos vão plantar amores-perfeitos no chão de      admira da minha amada casa da encosta.
Vou sentar-me na minha cadeira de verga e, ao lado da minha Margarida, vou esperar a noite para voltar a navegar nas ondas que batem no pontão.

Carlos Victor – 12ºB


Parabéns ao Carlos!

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