E porque falámos em sol na BE, lembrámo-nos de um texto de Gonçalo M. Tavares. Leia, aposto que vai adorar.
"Calvino
tinha nas mãos um livro cuja capa estava já por completo desbotada pelo
sol. O que antes era uma cor verde escura estava agora transformada num verde tranquilíssimo,
quase transparente.
Olhou para os outros livros na
prateleira. Todos estavam a perder a sua
cor original, como se a luz do sol mastigasse ou roesse – sim, aquilo parecia o
trabalho de um roedor subtil – a capa dos livros.
Um livro, por exemplo, que
fora colocado há menos de um mês nesse local da casa onde o sol, a dadas horas
do dia, incidia diretamente, apresentava um aspecto curioso: apenas uma linha da
parte de cima perdera a cor, para baixo o resto da capa mantinha o vigor da
coloração inicial. Não se sabe por que associação de ideias, mas Calvino
lembrou-se das diferenças entre as zonas do corpo tapadas ou não tapadas, durante o verão, pelo fato de banho.
Olhou
de novo para a prateleira e para as capas sem cor e subitamente como que
percebeu tudo: a origem primeira do fenómeno, os verdadeiros motivos daquele
acontecimento que alguém podia clarificar apenas, à superfície, como um
acontecimento químico. Mas não era assim tão simples. Calvino não estava
perante uma mera alteração de substancias, havia ali uma vontade, uma vontade
forte que se diria munida de músculos frágeis. E essa vontade insuficiente
vinha do sol: o sol, queria abrir os livros, a sua luz concentrava-se, com toda
a potência, na capa de um livro porque o
queria abrir, queria entrar na primeira página, ler as narrativas, refletir a
partir das grandes frases, emocionar-se com os poemas. O sol queria simplesmente
ler, ambicionava-o como a criança que está prestes a entrar na escola.
Calvino
meditou. De facto, não se lembrava de ter visto uma única vez um livro aberto ao sol numa das suas páginas.
Bem vulgar era que alguém, ao ar livre, pousasse um livro numa mesa ou num
banco do jardim ( ou mesmo no chão), mas sempre, percebia agora Calvino, sempre
com as capas duras fechado o seu
conteúdo, tapando o acesso às principais palavras.
Era
tempo pois de alguém agir. Era tempo de alguém retribuir esse toque carinhoso
que em certos dias a luz do sol projeta no rosto do homem, tranquilamente, mas
como que o salvando de uma grande
tragédia, do desespero, por vezes mesmo do suicídio.
Calvino olhou de novo para os livros da prateleira comtemplada pelo sol. Rapidamente
passou os olhos pelas lombadas. Estava a escolher um livro para alguém ler. Com
atenção profunda escolhia o livro mais
apropriado; não estava, repare-se, a escolher de acordo com o seu gosto, mas de
acordo com o gosto do outro. E finalmente tirou o livro. Eis um bom primeiro
livro para um leitor!, exclamou Calvino para si próprio.
Abriu-o,
a seguir, na primeira página, passada a ficha técnica (quem a quer ler?) e
pousou o livro, assim, aberto, no inicio da narrativa, virado para o ponto onde
o sol costumava descer:
(“Alice começava a ficar mais farta de estar para ali sentada ao lado da irmã,
na margem do rio, sem nada para fazer.”)
Amanhã,
voltaria de novo para virar a página. E nos dias seguintes faria o mesmo até ao
final do volume. E se, depois disso, a luz do sol continuasse a forçar a
entrada nos livros, Calvino respeitaria esse ímpeto avaliando-o como a ansiedade
de um leitor que já começou e não quer parar, não consegue: quer ler mais.
Se
fosse caso disso, Calvino escolheria outro livro - colocando algo de novo debaixo do sol -, depois outro e
outro, e voltaria todas as manhãs, sem falta, antes de nascer o dia, para virar
a página."
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